domingo, 6 de janeiro de 2013

Um teto todo seu - Virginia Woolf

 Um teto todo seu se originou da junção de dois artigos lidos perante a Sociedade das Artes, na Universidade de Girton (Reino Unido) em outubro de 1928. Os mesmos eram grandes demais para serem lidos na íntegra, então eles foram alterados e ampliados para gerar esse belo livro da Virginia Woolf.

Virginia Woolf
No início do livro, a autora que fora incitada a escrever sobre As mulheres e a ficção, se questiona sobre os diversos significados que essa proposta poderia englobar. Seria uma mera revisão bibliográfica e histórica da evolução das mulheres no campo da escrita profissional ou poderia conforme suas próprias palavras, significar: a mulher e como ela é; ou poderia significar a mulher e a ficção que ela escreve; ou poderia significar a mulher e a ficção escrita sobre ela; ou talvez quisesse dizer que, de algum modo, todos os três estão inevitavelmente associados, e vocês desejariam que eu os examinasse sob esse ângulo”. (p.8)

Sabendo que é tarefa impossível extrair a verdade absoluta sobre o tema, ela decide falar sobre algo que tem propriedade: a necessidade da mulher em ter dinheiro e um teto todo seu para que possa escrever. Como embasamento dessa linha de pensamento, ela parte em busca da Verdade sobre o assunto na Biblioteca do Museu Britânico. Se deparando com uma vasta produção sobre as mulheres: “Têm vocês alguma noção de quantos livros são escritos sobre as mulheres em um ano? (p.34)”,se perdendo no caminho e se sentindo estúpida por sentar em uma biblioteca sem saber bem pelo que procurar, e muito menos sem saber como iniciar e organizar sua busca, comenta a diferença de postura do rapaz ao lado “O estudante (....) que (...) estava, eu tinha certeza, extraindo puras pepitas do minério essencial a cada dez minutos, mais ou menos.”(p.36) No final desistindo de buscar “a verdade” ou a “opinião dos homens sobre as mulheres”, acabando por analisar as obras ficcionais escritas (e não escritas) pelas mulheres durante a evolução histórica do gênero:“Melhor seria (...) abreviar a pesquisa e pedir ao historiador, que registra não opiniões, mas fatos, para descrever sob que condições viviam as mulheres...”(p.53)

Mulher do séc XVII por Jean
 Étienne Liotard
Ao iniciar sua análise, debruçada sobre os livros de História define o cotidiano das mulheres antes do século XVIII como uma ausência. “... procurando pelas prateleiras os livros que não estavam ali (p.53).” Até 1700 as mulheres não produziram registros escritos, se não cartas. Portanto, nada se pode impingir dos seus hábitos, desejos e moral. Sabemos que elas não possuíam dinheiro e que eram casadas quisessem ou não por volta dos quinze ou dezesseis anos, não sabemos se elas sabiam escrever ou não, enfim, não temos idéia do que faziam de seus dias. A autora cita duas mulheres por volta do século XVII que escreveram poesia e que por tal foram ridicularizadas: Lady Winchilsea e Maragaret de NewCastle. Ambas eram nobres, sem filhos e tinham ótimos maridos, mas nem essa posição privilegiada impediu que fossem bajuladas por professores e ridicularizada pela corte. Na mesma época Margaret Cavendish foi tida como louca e excêntrica por escrever livros: "É claro que a pobre mulher está um pouco perturbada, de outro modo nunca poderia ser tão ridícula a ponto de arriscar-se a escrever livros, e versos também...(p.78)".

Woolf não nega a perturbação mental que costumava acometer essas mulheres, em favor da incapacidade delas em moldar o próprio talento, ao mesmo tempo em que deveriam enfrentar uma grande repreensão social. Contudo, algumas mulheres como Aphra Behn conseguiram mudar essa áurea de ridicularizarão que rodeava as mulheres escritoras. A partir do século XVIII as mulheres passaram a perceber que poderiam ganhar dinheiro escrevendo, e como muito bem pondera Woolf: “O dinheiro dignifica aquilo que é frívolo quando não é remunerado (p.82)” Isso não significa que as mulheres foram alçadas à gloria com seus escritos, mas ao menos elas conquistaram o direito de fazê-lo. Desembocando no início do século XIX  e nos escritos de  Jane Austen, Emily e Charlote Brontë e George Eliot. “E ali, pela primeira vez, encontrei diversas prateleiras inteiramente dedicadas às obras de mulheres.(p.83)” sem dúvida, a maioria romances. Woolf se arrisca a apontar que essa quase unanimidade teria relação com a falta de tempo e de um espaço próprio para a criação, é “mais fácil escrever ali prosa e ficção do que escrever poesia ou uma peça. (p.83)”. Contudo não se pode negar que restritas em sua liberdade, sem maiores experiências de vida obras como Villette, Emma, O morro dos ventos uivantes e Middlemarch — não deixam de retratar o modo de vida de mulheres que eram tão tolhidas socialmente e tão pobres que mal podiam comprar papel para escrever.
A partir do seu próprio conhecimento de causa, Virginia Woolf revela que o estado de espírito mais propício ao trabalho criativo só floresce quando são observadas as mínimas condições para tal. Um gênio não se desenvolve na pobreza, o exercício da arte não prevalece sobre a busca pelo sustento (não quando a escolha é apenas ou “arte” ou “fome”). Escrever não seria portanto, um jorro inevitável da cabeça do artista. “... pois a ficção, trabalho imaginativo que é, não cai como um seixo no chão, como talvez ocorra com a ciência; a ficção é como uma teia de aranha, presa apenas levemente, talvez, mas ainda assim presa à vida pelos quatro cantos (p.53)”. Nessa perspectiva ela afirma que as mulheres eram duplamente prejudicadas, por sofrer não apenas do desestímulo (como alguns homens), mas da verdadeira hostilidade e descrença. “Haveria sempre aquela afirmativa — você não pode fazer isto, você é incapaz de fazer aquilo — contra a qual protestar e a ser superada. (p.67)”. Em um trecho de memorável criatividade ela afirma que se Shakespeare tivesse tido uma irmã de igual talento, naquela época ela terminaria provavelmente morta na busca do mesmo sonho que impulsionou seu irmão a se tornar o maior dramaturgo do mundo, simplesmente porque o teatro não era uma opção para “moças direitas” e ponto final, sem exceções. “.... qualquer mulher nascida com um grande talento no século XVI teria certamente enlouquecido, se matado com um tiro, ou terminado seus dias em algum chalé isolado, fora da cidade, meio bruxa, meio feiticeira, temida e ridicularizada. Pois não é preciso muito conhecimento de psicologia para se ter certeza de que uma jovem altamente dotada que tentasse usar sua veia poética teria sido tão contrariada e impedida pelas outras pessoas, tão torturada e dilacerada pelos próprios instintos conflitantes,que teria decerto perdido a saúde física e mental.(p.62)”

Em uma passagem muita significativa ela esclarece como ela própria pôde se dar ao luxo de se tornar uma escritora “A notícia da herança chegou certa noite quase simultaneamente com a da aprovação do decreto que deu o voto às mulheres. A carta de um advogado caiu na caixa do correio e, quando a abri, descobri que ela me havia deixado quinhentas libras anuais até o fim da minha vida. Dos dois — o voto e o dinheiro —, o dinheiro, devo admitir, pareceu-me infinitamente mais importante. Antes disso, eu ganhara a vida mendigando trabalhos esporádicos nos jornais, fazendo reportagens sobre um espetáculo de burros aqui ou um casamento ali; ganhara algumas libras endereçando envelopes, lendo para senhoras idosas, fazendo flores artificiais, ensinando o alfabeto a crianças pequenas num jardim de infância. Tais eram as principais ocupações abertas às mulheres antes de 1918. Acho que não preciso descrever em detalhes a natureza árdua do trabalho, pois talvez vocês conheçam mulheres que o tenham feito; nem tampouco a dificuldade de viver com aquele dinheiro, quando era ganho, pois é possível que vocês já tenham tentado fazê-lo. Mas o que permanece ainda comigo como uma imposição pior do que essas duas é o veneno do medo e da amargura que aqueles dias geraram em mim. Para começar, estar sempre fazendo um trabalho que não se queria fazer e fazê-lo como uma escrava, lisonjeando e adulando, nem sempre necessariamente, talvez, mas isso parecia necessário e os interesses eram grandes demais para correr riscos; e depois a idéia daquele dom único, que ocultar equivalia à morte (um dom pequenino, porém caro para sua possuidora), perecendo, e,com ele, o meu ego, a minha alma — tudo isso se transformou praticamente em ferrugem, corroendo a floração da primavera, destruindo a árvore em seu âmago. Contudo, como estava dizendo, minha tia morreu; e sempre que troco uma nota de dez xelins, desaparece um pouco daquela ferrugem e a corrosão é raspada, vão-se o medo e a amargura.”(p.47). Essa citação resume o caráter e o título da obra. Um teto todo seu é a condição mínima para que o ser humano possa exercer livremente a sua escrita. Mas esse “teto” deve ser entendido não apenas como um loccus físico, mas também como um loccus social, psciológio e emocional. Nessa perspectiva, ela incita as mulheres a serem donas do seu corpo e da sua mente. Conquistar um teto para si significa obter a liberdade: condição fundamental para a criação e desenvolvimento artístico.

Todas essas idéias pode parecer bastante óbvias nos dias de hoje. Mas é necessário imaginar essas palavras sendo escritas em 1928. O que quero dizer é que essas palavras antecederam ou foram concomitantes à luta pelo Sufrágio Feminino, entende? Essa mulher estava não só pensando sobre isso, como escrevendo e veja só tendo a ousadia de publicar (!) esses pensamentos antes que as mulheres fossem seres dignos o suficiente para votar nas eleições!

Admito que esse não é o único livro da Woolf que possuo, mas é o primeiro dela que li. E posso dizer sobre o seu estilo: ela possui a humildade dos grandes escritores, e também aquele misto de ironia e amargura que tanto me agrada. Ela admite com sinceridade que é passível de erros e julgamentos e é justamente isso que torna suas palavras tão sérias e dignas de consideração. “Pode-se apenas dar à platéia a oportunidade de tirar as próprias conclusões, enquanto observa as limitações, os preconceitos e as idiossincrasias do orador.”(p.8) A todo tempo Virginia Woolf reconhece a possibilidade de não abarcar a verdade do mundo na sua produção, possibilitando assim que o leitor duvide, questione e amadureça. Com essa leveza de posição ela não deixa também de ser engraçada. Não levar seus pensamentos tão à sério permite a autora caçoar de si mesma, dos outros e do instituído – não como um desrespeito à alguém especifico, mas como uma troça à chamada verdade absoluta, que tanto escritores almejam em seus livros.

No final, parece que sem saber muito como, Virginia acaba por cumprir o desafio que lhe foi dado: escrever sobre a mulher e a ficção. Escrevendo simplesmente sobre si e suas antepassadas e deixando um recado à suas predecessoras: “escrevam sempre, escrevam qualquer coisa. Agora que finalmente vocês podem, abusem desse direito, tornando-o um dever: escrevam mulheres!

Para quem ficou interessado, segue o link para baixar o livro. As citações encontradas nesse texto são referentes à seguinte edição: Um teto todo seu. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Círculo do Livro, 1990.

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